Clarice
Lispector nasceu na Ucrânia, na aldeia Tchetchenilk, no ano de 1925. Os
Lispector emigraram da Rússia para o Brasil no ano seguinte, e Clarice nunca
mais voltou á pequena aldeia. Fixaram-se em Recife, onde a escritora passou a
infância. Clarice tinha 12 anos e já era órfã de mãe quando a família mudou-se
para o Rio de Janeiro. Entre muitas leituras, ingressou no curso de Direito,
formou-se e começou a colaborar em jornais cariocas. Casou-se com um colega de
faculdade em 1943. No ano seguinte publicava sua primeira obra: “Perto do
coração selvagem”. A moça de 19 anos assistiu à perplexidade nos leitores e na
crítica: quem era aquela jovem que escrevia "tão diferente"? Seguindo
o marido, diplomata de carreira, viveu fora do Brasil por quinze anos. Dedicava-se
exclusivamente a escrever. Separada do marido e de volta ao Brasil, passou a
morar no Rio de Janeiro. Em 1976 foi convidada para representar o Brasil no
Congresso Mundial de Bruxaria, na Colômbia. Claro que aceitou: afinal, sempre
fora mística, supersticiosa, curiosa a respeito do sobrenatural. Em novembro de
1977 soube que sofria de câncer generalizado. No mês seguinte, na véspera de
seu aniversário, morria em plena atividade literária e gozando do prestígio de
ser uma das mais importantes vozes da literatura brasileira.
Obra:
O objetivo de Clarice, em suas obras, é o de atingir
as regiões mais profundas da mente das personagens para aí sondar complexos
mecanismos psicológicos. É essa procura que determina as características
especificas de seu estilo.
O enredo tem importância secundária. As ações - quando
ocorrem - destinam-se a ilustrar características psicológicas das personagens.
São comuns em Clarice histórias sem começo, meio ou fim. Por isso, ela se
dizia, mais que uma escritora, uma "sentidora", porque registrava em
palavras aquilo que sentia. Mais que histórias, seus livros apresentam
impressões. Predomina em suas obras o tempo psicológico, visto que o narrador
segue o fluxo do pensamento e o monólogo interior das personagens. Logo, o
enredo pode fragmentar-se. O espaço exterior também tem importância secundária,
uma vez que a narrativa concentra-se no espaço mental das personagens.
Características físicas das personagens ficam em segundo plano. Muitas
personagens não apresentam sequer nome. As personagens criadas por Clarice
Lispector descobrem-se num mundo absurdo; esta descoberta dá-se normalmente
diante de um fato inusitado - pelo menos inusitado para a personagem. Aí ocorre
a “epifania”, classificado como o momento em que a personagem sente uma luz
iluminadora de sua consciência e que a fará despertar para a vida e situações a
ela pertencentes que em outra instância não fariam a menor diferença. Esse fato
provoca um desequilíbrio interior que mudará a vida da personagem para sempre.
Para Clarice, "Não é fácil escrever. É duro
quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados". "Mas
já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as
entrelinhas". "Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio
sobre o mundo."
Romances:
Perto do Coração Selvagem, RJ, A Noite, 1944.
Lustre, RJ, Agir, 1946.
A Cidade Sitiada, A Noite, 1949.
A Maçã no Escuro, RJ, Francisco Alves, 1961.
A Paixão Segundo G.H., RJ, Francisco Alves, 1964.
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, RJ, Sabiá,
1969.
A Hora da Estrela, RJ, José Olympio, 1977.
Contos e crônicas:
Laços de Família, RJ, Francisco Alves, 1960.
A Legião Estrangeira, RJ, Ed. do Autor, 1964.
Felicidade Clandestina, RJ, Sabiá, 1971.
A Imitação da Rosa, RJ, Artenova, 1973.
A Via-Crucis do Corpo, RJ, Artenova, 1974.
A Bela e a Fera, RJ, Nova Fronteira, 1979.
Literatura infantil:
Mistério do Coelho Pensante, RJ, J. Álvaro, 1967.
A Vida Íntima de Laura, RJ, Sabiá, 1974.
A Mulher que Matou os Peixes, RJ, Sabiá, 1969.
Quase de Verdade, RJ, Rocco, 1978.
"Meus livros felizmente para mim não são
superlotados de fatos,
e sim da repercussão dos fatos nos indivíduos.
Eu me refugiei em escrever. Acho que consegui devido a
uma vocação bastante forte e uma falta de medo ao ser considerada
diferente no ambiente em que vivia."
“Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a
seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram
aceitas."
OBRA INFANTIL DE CLARICE LISPECTOR
A literatura de Clarice Lispector para crianças, com
sensibilidade quase maternal, cria um clima de aconchego e conforto, como se a
cada vez que as páginas do livro fossem abertas, as crianças leitoras se
sentissem como que entrando na sala de visitas da casa da autora e fossem ouvir
uma história bem criativa com todo aquele ar de intimidade. Como se a história
fosse contada por alguém bem próximo e bem querida: a mãe, a tia, a avó, o pai,
etc. Alguém em quem a criança confiasse “sentar” ao lado para ouvir uma
historinha e deixando-se levar pela narração. Isto está bem evidente na hora em
que a narradora, em “A mulher que matou os peixes” diz:
“Sabem de uma coisa? Resolvi agora mesmo convidar
meninos e meninas para me visitarem em casa. Vou ficar tão feliz que darei a
cada criança uma fatia de bolo , uma bebida bem gostosa, e um beijo na testa.”
O clima de intimidade, próprio para ganhar confiança
vem do modo como ela “dialoga” com
criança através da obra. Como no mesmo livro “A Mulher que Matou os
Peixes”, logo no início antes de contar a história vem a frase:
“Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome
é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e meu
coração vai ouvir.”
E esse recurso estilístico se repete várias vezes. As
digressões ou os supostos diálogos da narradora com o leitor predominam em
relação às ações da própria narrativa. Clarice Lispector parecia estar ciente
de como penetrar no Universo Infantil de modo seguro e que não fizesse em
momento algum com que o pequeno leitor se sentisse ‘sozinho’ ao ler a história
– na verdade, a impressão de que a narradora é uma companhia está muito
presente, tal a intimidade oferecida pelo texto. Como em uma das passagens de
“O Mistério do Coelho Pensante”, a confiança a ser conquistada é uma
prioridade. E pode-se estabelecer uma analogia:
“Coelho é como passarinho: se assusta com carinho
forte demais, fica sem saber se é por amor ou por raiva. A gente tem que ir
devagar para ele ir se acostumando, até que ele ganha confiança.”
(MCP)
Da mesma forma a narradora começa a narrativa aos
pouquinhos, sempre fazendo intervenções ao longo dela até que o leitor se veja
completamente envolvido, e, isso também
é muito característico de sua obra direcionada à camada adulta. Numa linguagem
simples e recheada por onomatopéias, metáforas, aliterações e outros recursos
de linguagem, suas fábulas encontram meios de profunda identificação com a
criança. Em “O Mistério do Coelho Pensante”, Joãozinho, é um coelho que pensa e
tem idéias brilhantes e que ninguém sabe de onde vêm, e, por isso permanecem os
“mistérios” do começo ao fim do livro. Laura, de “A Vida Íntima de Laura”,
também pensa. Apesar de “burrinha”, tem “pensamentozinhos e sentimentozinhos”,
e até cacareja assim: “Não me matem! Não me matem!” Ulisses de “Quase de
Verdade” é o cachorro que “poupa” o trabalho de Clarice ao contar a história,
ou melhor, de ser o narrador. É sabido, bonito e com seu “au- au-au” expressa
tudo o que está sentindo, achando ou pensando. Só em “A mulher que matou os
peixes” que não existem animais falantes e é também, juntamente ao “Quase de
Verdade”, o único livro infantil de Clarice Lispector – entre os outros quatro
livros citados – narrados em primeira pessoa o tempo todo. Têm um narrador
protagonista que conta os fatos através das memórias de suas experiências. E
parece também, que em “A Mulher que Matou os Peixes”, que ela alcança maior
empatia com os leitores –mirins. Nesta obra, a narradora se “expõe totalmente”
em busca da justificação do crime que traria sua absolvição por ter matado os
peixes. Mas, em geral, as narrativas apresentam uma linguagem muito próxima à
da criança, seja com suas repetições de idéias ou termos quando deseja frisar
algum tópico importante e nem sempre encontra recurso adequado para isso. Essas
repetidas vezes são responsáveis pela facilidade com que as passagens são
entendidas e interpretadas pelas crianças.
São narrativas simples e que mesmo tendo alguma ação
se concentram – a exemplo de suas narrativas para adultos – muito mais nos
“aspectos psicológicos” das personagens fantásticas. Nessa mistura de fantasia
e realidade, o íntimo de cada personagem é sondado por uma análise meticulosa
ou o uso de uma linguagem tão próxima à criança que torna essa “análise” feita
por ela própria. As ações parecem ser meros pretextos para o desenvolvimento de
uma minuciosa – obviamente muito mais ‘descomplicada’ – análise de um perfil
psicológico dentro da história, sem deixar, mais uma vez, de comparar essa
problemática de sua obra infantil com sua obra para adultos.
Essas fábulas, assim como as todas as demais, uma vez
ou outra podem ter um cunho moralizante: como em Laura, a galinha, que apesar
de ser muito feia e burra tem um grande coração, aliás clichê aludindo ao fato
da beleza interior ser mais importante do que a exterior:
“A verdade é que Laura tem o pescoço mais feio que já
vi no mundo. Mas você não se importa, não é? Porque o que
vale mesmo é ser bonito por dentro.”
(VIL)
Em “Quase de Verdade”, também a nuvem Oxélia deixa ao
final da história de ser ruim ao chover. Sua cor preta de nuvem carregada de
chuva torna-se branca como nuvenzinha de verão. Assim também como o cachorro
Bruno mata o cachorro Max, em “A Mulher que Matou os Peixes”, num acesso de
ciúmes pelo dono. Acaba sendo morto pelos outros cachorros da vizinhança em
‘vingança’ algum tempo depois. Todas essas histórias são baseadas em fábulas
originais, mas com um toque todo pessoal de Clarice Lispector.